segunda-feira, julho 09, 2012

Autonomia e coragem

O facto de ser filha única e ter nascido com pipi no seio de uma cultura judaico-cristã faz com que por vezes me depare com algumas barreiras supostamente protectoras que me fazem questionar se de facto estas me protegem, ou se, pelo contrário, me restringem a autonomia e força.
Felizmente tive uma educação relativamente balançada no que diz respeito ao que podia e não podia fazer. Mas isso é porque eu nasci da minha mãe e não da minha avó, caso contrário a história teria outro rumo completamente diferente. Em todo o caso, e agradecendo a liberdade que me foram dando progressivamente, ainda assim, é com alguma estranheza e, no caso da minha avó, com completa desaprovação, que sou recebida quando digo coisas tão simples como "vou andar de bicicleta e vou sozinha", "vou para Lisboa e vou sozinha", "vou para o Porto e vou sozinha". Quando disse "vou trabalhar para Paris e vou sozinha", então aí é que caiu o Carmo e a Trindade para a minha avó.
Desta vez, não lhe vou dizer o que vou fazer depois de amanhã, porque vai ser a mesma fita. Esta terça-feira vou, sozinha, para o Gerês para fazer vigilância florestal. Levo comigo a bicicleta, tenda, saco-cama e mochila e vou de regional (porque é o único comboio de longo curso que permite o transporte de biclas) e urbano. Melhor dizendo, vou de três regionais e dois urbanos. Saio às 7h20 de Abrantes e chego a Braga às 15h. Vai ser uma aventura, vai, pode ter algumas desventuras pelo meio, pode, mas eu vou à mesma.


Este fim de semana, como que a estrear as minhas capacidades, levei a bicicleta no comboio para Lisboa e andei com ela fora das zonas habituais. Percorri a linha azul, amarela e vermelha do metro mais do que uma vez, andei pelo jardim da Quinta das Conchas, por Benfica e pelo Parque das Nações e, tirando as manhas habituais com as mudanças, ela portou-se bem...e eu também. Se eu tivesse dito isto à minha avó, a mulher já ficava com menos uma semana de vida. E podeis pensar que as avós são todas assim, que não é para ligar. A diferença é que a maioria das avós não tem o poder ou influência que a minha tem (cada vez menos, para seu grande pesar e para minha rica sanidade mental).

Isto tudo para dizer que muitas vezes são os outros, e por consequência, nós próprios que criamos obstáculos que na verdade nem existem e que, quando ultrapassados, dão-nos um tremendo gozo e fortalecem-nos física e psicologicamente. E eu cheguei a esta conclusão hoje por um motivo em particular que me faz ficar orgulhosa de mim própria.

Quando cheguei a Abrantes, fui à Sportzone comprar um suporte para a bicicleta e, enquanto o moço estava a montá-lo, decidi ir ver de uma mochila e de uma parte de baixo de um bikini. Nisto, por entre as várias prateleiras e expositores da loja, vejo, a alguns metros, uma cabeça a olhar para mim. Era uma cabeça de um homem que eu conheci quando tinha 14 anos e que deve estar com os seus 50 anos de idade. Já falei dele aqui. É um tipo a quem eu alcunhei de Pedófilo. Não que o seja, mas eu decidi chamar-lhe isso, porque este fulano, casado e com dois filhos mais novos que eu, decidiu assediar-me quando eu era mais garota. Nada de grave, felizmente. Apenas mensagens, toques e apitadelas de carro, que eu fui ignorando até que ele parou. Mas o interessante de hoje não foi tê-lo encontrado, foi a forma como eu lidei com ele. Porque volta não volta eu cruzo-me com o Pedófilo (o Pingo Doce então parece ser o local fatídico) e lido com ele quase sempre da mesma forma. Vejo-o e depois ignoro-o, mas imediatamente sinto-me incomodada com a presença do tipo, sobretudo porque o vejo com a mulher e questiono-me se ela conhece a peça que tem em casa.
Mas hoje agi de maneira diferente. Ele estava a meio caminho entre o sítio das mochilas e o sítio dos bikinis, maneira que eu passei-lhe mesmo rente ao nariz e quando já estava mais próxima, olhei-o fixamente nos olhos e devolvi-lhe um olhar mixado de asco e desprezo. A mensagem foi algo como "Sim, ainda me lembro de si e sim, você continua a enojar-me". Como a mensagem chegou ao receptor, não sei nem me interessa. O que me interessa é que o enfrentei e já não precisei de me sentir incomodada com a presença dele, porque já lhe tinha dado a mensagem que queria e marcado a minha posição.

E o que é que o enfrentar o Pedófilo tem a ver com as minhas aventuras de bicicleta? Tudo.
É como deixar um miúdo brincar na lama. Ou deixá-lo cair e levantar-se sozinho. É como perguntar "porque é que achas isso?" em vez de dar logo uma resposta.
A liberdade faz com que eu tenha mais autonomia. A autonomia faz com que eu tenha mais coragem, mais força, menos bloqueios.

1 comentário:

  1. É mesmo isso, Carolina. Também sinto isso. E parece que quanto mais encaramos os medos e os incómodos de frente, mais força vamos ganhando, não é?

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